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Fábio Araújo (coordenador da iniciativa do Real Digital no Banco Central) comenta o projeto do Real Digital, atualmente chamado de Drex, o que motivou o Banco Central a desenvolvê-lo, os casos de uso e explica a questão da privacidade e controle sobre o dinheiro.
Tudo isso e muito mais no Talkenização, o podcast da Liqi. Confira o episódio no Youtube e o texto completo com as colocações de Fábio logo abaixo!
O que é Real Digital para o Banco Central?
O Real Digital é o mesmo real que usamos no dia a dia, mas agora levaremos esse real para uma nova tecnologia, de ativos digitais, para permitir que novos serviços sejam realizados.
Isso significa que o banco central vai fazer uma criptomoeda?
Não, porque o real digital não é uma criptomoeda em essência, é a moeda brasileira que está sendo transposta para esse ambiente onde os criptoativos surgiram e essa tecnologia se desenvolveu.
Quais foram as motivações do Banco Central para criar o Real Digital?
O Banco Central vem acompanhando há alguns anos as tecnologias que tornam possível o mercado cripto.
Fizeram testes já em 2016 e um comunicado à sociedade em 2017 na época do boom dos ICOs, quando haviam muitas pessoas interessadas, informando que apesar de estarem sendo tratadas como moeda, essas criptomoedas não são as moedas oficiais do Brasil e não eram, até então, reguladas pelo Banco Central.
O que o Banco Central deixou claro era que as criptomoedas eram uma forma de investimento e também eram usadas como meio de pagamento.
Em 2019, à medida que a tecnologia amadureceu, teve o gatilho mundial que foi o caso do Facebook querendo fazer uma stablecoin global. O Banco Central já havia falado que essa tecnologia era promissora e poderia trazer novos serviços, mas ainda era cedo para entrar numa discussão mais profunda.
Quando uma empresa do porte do Facebook demonstrou interesse em usar essa tecnologia para desenvolver um produto, deixou de ser uma questão de nicho, de teste, de pessoas early adopters, e passou a ser um assunto de interesse global.
A partir de 2019 todos os bancos centrais entram com mais profundidade nessa discussão.
Além dos testes de 2016, o BC também havia feito testes em 2018. E, em 2021, começou o grupo de estudos para testar as aplicações e entender como poderiam aprimorar o ecossistema financeiro brasileiro e como abrir espaço para novos serviços.
Um objetivo muito diferente da moeda digital chinesa
Apesar dos pagamentos digitais serem muito utilizados na China e, mesmo antes do Yuan digital, já existiam opções em formato digital, duas empresas de redes sociais dominavam quase 100% do mercado por lá.
Quando você tem empresas, tem concorrência entre elas e, então, começam as taxas e, neste meio, fica mais difícil para os cidadãos utilizarem.
Para resolver esse problema, a China criou um modelo público para que fosse mais acessível e melhorado, quebrando o monopólio pré-existente.
No caso do Brasil, isso não era um problema, devido às empresas de serviços de pagamentos amplas, é um mercado pulverizado e diversificado.
O ponto da moeda digital na China é o pagamento, mas desde o primeiro momento o Brasil entendeu que se fosse apenas para fazer pagamento, o Real Digital não seria necessário, porque o Pix já existe e funciona de maneira muito eficiente, sendo exemplo internacional.
Como o Real Digital se diferencia das formas tradicionais de moeda?
Para diferenciar o real digital das outras formas de moeda precisamos ter algo em mente: quando você pensa num ambiente de criptoativos, como o Bitcoin, ele não é só um meio de pagamento, ele é também uma plataforma por trás.
Então, essas moedas digitais não são apenas um valor, o Real Digital é o valor, mas é também a plataforma de negociação, a infraestrutura, para permitir serviços.
O Pix é só uma plataforma para pagamentos, o dinheiro que circula é o real. Já quando falamos do Real Digital, temos uma plataforma para liquidações inteligentes e o valor real também lá dentro.
A verdadeira vantagem está nessa plataforma que melhora a programabilidade dos serviços financeiros e o fato de que a inovação neste ambiente se dá de maneira muito mais rápida.
Quais são os casos de uso do Real Digital na economia brasileira?
Existem diversos casos de uso para o Real Digital, um dos principais tem a ver com o Delivery versus Payment.
Ao comprar uma usina, por exemplo, que é uma transação complexa, há muita desconfiança, há a necessidade de contratar uma terceira parte que vai analisar os contratos e as documentações e garantir que a transação seja feita de fato.
Dentro das tecnologias digitais ligadas ao Real Digital, esses custos da terceira parte vão a zero.
A mesma coisa acontece para a compra de um automóvel. Quero comprar um carro, mas não conheço o vendedor, e se eu fizer um depósito de boa fé e a pessoa sumir ou os documentos estiverem incorretos? Do outro lado, a pessoa pensa, se eu transferir a documentação e a pessoa não me pagar, o que fazer?
Nesse meio é possível entregar a propriedade do carro e o dinheiro para o smart contract, que verifica se o documento é verdadeiro e se o valor enviado é o mesmo que foi acordado entre as partes.
Caso tudo esteja correto, a transação ocorre ao mesmo tempo para as duas partes, ou seja, o dinheiro e a propriedade são transferidos para cada um dos participantes no mesmo momento, sem a necessidade de “confiar” na parte.
Um imóvel também pode ser esse produto, assim como diversos outros ativos.
Nos instrumentos financeiros também há casos de uso, por exemplo, para quem investe em Tesouro Direto ou outros produtos do tipo e precisa de liquidez, mas não é o momento ideal para retirar.
Nesse caso, você poderia dar aquela poupança como garantia e pegar um empréstimo, quando chegar o salário no final do mês, você paga o empréstimo e depois pega a liquidez do seu investimento.
Qual tecnologia está sendo utilizada?
A principal tecnologia que o Real Digital utilizará será uma DLT. A Blockchain é um tipo de DLT, “é o bombril da palha de aço”. A blockchain é a do Bitcoin, as outras redes, por mais que chamemos de blockchain, são tecnologias de Registro Distribuído (DLT).
No Real Digital será usada a Hyperledger Besu que é compatível com o Ethereum e tem a capacidade de gerar novas soluções.
O sistema de DLT pode impactar todos os registros de ativos, que estarão sempre registrados nele. Todo o processo de registro e custódia deve mudar, por isso, operações que eram muito complexas na tecnologia atual, ficam facilitadas.
Como o Real Digital se relaciona com as finanças descentralizadas (DeFi)?
Finanças descentralizadas é uma inspiração para o Real Digital. Porém, há um espectro, que pode chegar a ser completamente descentralizado, no caso de cada pessoa gerir 100% das suas próprias finanças.
Isso pode acontecer quando todas as pessoas tiverem conhecimento, porque hoje pode ser muito perigoso e não é justo.
É necessário identificar o grau de descentralização que será útil e seguro para as pessoas.
Nesse modelo do Real Digital, há espaço para fintechs trabalharem no modelo de DeFi, mas compreendendo se os usuários saberão utilizar, porque às vezes a pessoa quer falar com o gerente e no DeFi não há gerente.
Quais oportunidades o Real Digital oferece para o mercado financeiro no longo prazo?
No curto prazo, teremos a possibilidade de registro de ativos que facilita a troca de ativos. É o primeiro degrau da escada que está sendo construído com o real digital.
O segundo passo é começar a construir operações de crédito com base nesses ativos. Por exemplo, tenho uma casa que está tokenizada e quero comprar um automóvel, posso dar a casa como garantia para pegar um empréstimo mais barato.
E a partir daí, o céu é o limite para a criatividade, o sistema financeiro pode ser completamente redesenhado.
É possível ter serviços de crédito e de investimento sendo commodities, que diversas fintechs e empresas oferecem. Cada uma com sua especialidade, seja de crédito, seja captação de recursos de um mercado específico, entre muitas outras possibilidades.
E isso faz com que você conecte os recursos para vários setores da economia.
Você facilita a entrada e facilita que cada empresa especializada numa área preste aquele serviço. Se tomarmos como exemplo os serviços oferecidos por bancos, o que mudaria é que agora eles poderiam ser tomados de vários provedores diferentes.
É como se você chegasse em um restaurante e falasse que quer a batata frita do restaurante A, a bebida do restaurante B e a sobremesa do restaurante C. Você não precisaria mais contratar todos os serviços da mesma instituição, poderia encontrar as melhores oportunidades dentro da especialidade de cada uma.
Quais são os planos do Banco Central para promover a inclusão financeira?
O ponto da inclusão financeira é fundamental. O Pix é uma coisa que para as pessoas é muito simples, mas se fosse descrever como foi montado o sistema do Pix diversas tecnologias complexas que a maior parte das pessoas desconhece.
E essa é a beleza da tecnologia, aquilo que aparece pro usuário final não precisa refletir a complexidade que está por trás.
Quando olhamos pro Linux, é um sistema super interessante e flexível, no qual você consegue adaptar para todas as suas necessidades. Porém, a maior parte das pessoas não consegue usar, optam por outros modelos porque estão com uma roupagem mais fácil de usar.
Esse é o interesse no Real Digital, pegar as tecnologias de criptografia e DLT e colocar uma roupagem para que as pessoas acessem. O piloto também tem esse teste como foco, colocar ativos e vários agentes para negociar esses ativos.
Então, imagine que quero vender um título público que possuo da mesma maneira que tenho saldo da conta corrente. Quero comprar uma TV e vou vender uma parte desses títulos.
Se fosse uma transação tão fácil quanto o Pix, eu te passo meus títulos, você me passa o dinheiro e acabou. É completamente factível e é um dos testes deste primeiro momento do Real Digital.
Em termos de inclusão o objetivo é simplificar as transações e o acesso.
Há inclusão por dois lados, o primeiro é dar a possibilidade de ter uma interface simples para fazer transações financeiras. A segunda é padronizar o acesso para que mais empresas entrem, então, também democratiza o acesso a serviços.
Há democratização tanto de tomadores quanto de prestadores.
Como o projeto do Real Digital aborda questões relacionadas à privacidade e segurança?
Para Fábio Araújo, os discursos sobre a questão da privacidade nesses ambientes são paradoxais.
De um lado, tem gente que acredita que não deveria ser feito, porque ninguém vai saber quem está participando. Por outro lado, tem gente falando que não deveria ser feito porque vão saber tudo o que está sendo feito com o dinheiro.
O ponto fundamental é ver o que está escrito nas leis! O Banco Central vai seguir as leis, assim como foi para o Pix, o sistema será feito para cumprir as leis.
Hoje no Pix, se for descoberta uma fraude que alguém está tirando dinheiro da minha conta, é necessário um instrumento para interromper aquelas operações. Ou uma conta que está recebendo dinheiro de terrorismo, é necessário congelar aquela conta.
É fundamental existir a funcionalidade, mas ela será aplicada de acordo com a lei.
“Ah, o Real Digital poderá congelar a conta das pessoas”. Sempre foi possível congelar a conta das pessoas, até quando não era digital e era por papel, porque é a lei e não porque a tecnologia permite.
“Ah, mas pode confiscar o dinheiro”. Confiscos não são uma questão tecnológica, é uma questão social da realidade que a pessoa está vivendo, como casos de fraudes.
É importante haver isso inclusive para integrar a infraestrutura de maneira internacional.
Não vai mudar nada do que temos hoje, não vai haver informações a mais colhidas nem pelo BC nem pelo banco. Inclusive porque temos uma lei muito boa de proteção de dados pessoais, a LGPD, que vai muito além da questão financeira e fala inclusive das redes sociais. Algo que o Real Digital está completamente alinhado para cumprir.
O Banco Central não quer ver mais das transações das pessoas do que a lei permite, mas precisa ter as funcionalidades para garantir a individualidade das pessoas e protegê-las de fraudes.
Como será a integração com outras formas de pagamento e em âmbito internacional?
A integração internacional já é possível pela tecnologia, inclusive melhor do que a que temos hoje.
O BC tem conversado com organismos internacionais, como o FMI, o banco central dos bancos centrais. Mas no momento a questão da integração não é tecnológica, mas de acordos e negociações.
Para isso, pode ser necessário organismos multilaterais para trazer esses países para a mesa para juntos definirem modos de integração.
O papel moeda não vai ser atacado pelo Real Digital, a intenção não é sumir com ela, mas oferecer mais possibilidades. É como o cheque, ele nunca foi proibido, mas hoje quase ninguém usa.
O papel moeda continua, mas darão cada vez mais facilidades para que seja possível fazer transações de modo digital. É uma nova opção, mas não a única maneira de negociar.
Como saber mais sobre o projeto do Real Digital?
Para acompanhar o avanço do projeto do Real Digital, há o fórum do Real Digital para desenvolvedores e interessados no assunto de moedas digitais, que está aberto para cadastros.
Nesses encontros, as novidades do Real Digital são apresentadas para que haja o máximo de transparência.
O Real Digital não é algo para o banco central, é para a sociedade utilizar e, por isso, há abertura para que a sociedade possa ajudar nesse desenvolvimento!
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